segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Casa Grande & Senzala.

Piracicaba passou a fazer parte de nossas vidas quando Beto começou a fazer agronomia na ESALQ. É uma faculdade muito ajeitada onde os alunos desenvolvem um amor a escola que beira a um culto. O Esalqueano é igual ao Corintiano ou Flamenguista. Com a entrada do Guilherme, aí até nós começamos a ficar fanáticos. Eles moravam em república com mais 8 ou 10 companheiros e de todos os anos. Isso já era feito para perpetuar a mesma e sempre entrava os bichos do primeiro ano para substituir os formandos que estavam saindo.
As histórias eram inúmeras e uma mais engraçada do que a outra. Teve uma vez que estavam na boate e um desses bad boys tentou tomar a namorada de um deles e não sabia que estavam de lote, brigaram e surraram o cara. No dia seguinte chegam uns três carros na república e descem um monte de marmanjos, cada um mais sarado que o outro, e um deles de cara inchada e pela janela reconheceram a peça. Telefonaram para outra república pedindo reforços pois os caras eram em 8 e eles só dez. Como cada um dos deles valia por dois dos nossos, na boate já precisou se quatro para dar em um, a proporção estava desleal. Responderam que já estavam indo. Para esperar a chegada do reforço, foram tentar enrolar o pessoal para não deixar que eles depredassem a casa. Passaram-se horas e nada do socorro chegar e eles conseguiram contornar a situação, ainda que com certa humilhação, do tipo "num bate na gente não, ontem estava todo mundo meio alegrinho. Desculpe aí vai. Aqui só tem sangue bom, desperdício derramá-los. Esses roxos na cara dele saem logo e a mordida na bochecha nem cortou. Tem um remédio que se chama arnica que é muito bom. Eu tenho aí e vou emprestar para ele." Depois que os caras se mandaram e eles já se sentindo aliviados, humilhados e putos com os companheiros chamados, chegam os mesmos em 8 carros, todos freiando e derrapando em frente da república e descem uns 10 homens de dentro deles. Ninguém acreditava no que estava vendo e passou a raiva na hora. Todos fantasiados de super heróis, homem aranha, batman, super homem, ninja tinham uns três. Os putos se atrasaram para fazer graça.

Só tinha uma empregada, a Nê, abreviação de Nega, para tomar conta daquele bando de homem. Tinha dois olhos e literalmente um na brasa e outro no peixe. Nunca vi nada mais feia e justificaram que tinha que ser assim pois todas as bonitinhas que apareceram foram atropeladas até pedirem contas. Lavava a roupa, limpava a casa e cozinhava, tá certo que lavava mal e uma vez por semana, limpava pior ainda e uma vez por mês e cozinhava pessimamente, mas pelo menos todos os dias. Acontecia do nego sair de casa, pegar uma garoa e começar a espumar. A Nê tinha esquecido de enxaguar a camisa. Tinha uma aranha moradora em cima da geladeira, e o pessoal com uma caneta hidrográfica, escreveu na parede "olha Nê ,tô aqui, cuida d'eu".

Quando o Beto entrou na faculdade, o primeiro lugar que ele foi morar, foi com o Batô, um amigo da Laura, em uma república que era um espetáculo e numa CASA GRANDE, que era a antiga residência dos pais de um dos estudantes e que tinham se mudado de cidade e eram produtores de cana e muito abonados, era um palacete. No ano seguinte, quando o Guilherme entrou na mesma faculdade, o Beto mudou e foram juntos para uma nova república que se chamava SENZALA, e na nossa primeira visita a ela, achamos o nome muito apropriado. Um dia eles vão escrever um livro sobre esses tempos e se chamará "Casa Grande & Senzala", título muito apropriado que eles se apropriarão do mesmo. O Gilberto Freyre não vai ligar. Na primeira visita aos dois juntos que conhecemos a Senzala e a Nê. Beá chorou uns 100 km na volta e de quando em quando murmurava que não tinha criado os filhos para viver "naquilo". Eu tentava consolá-la com um "concordo plenamente, você viu o fogão?, nunca passou bombril nem por perto dele", aí ela replicava, "e o sofá, meu Deus!".
 A casa da república tinha sido uma escola infantil, dessas que o banheiro tem dois vasos juntos. Quando fui usá-lo e vi aquilo, perguntei ao pessoal porque eles não tinham mandado retirar um. Para quem só faz coco de porta trancada e não pode ter ninguém perto, nem do lado de fora, a resposta foi inesperada: 
"E aí tio, quando bater a vontade em dois ao mesmo tempo? E depois a gente troca idéias durante". Parece que a coisa estava tão banalizada que o nego ia cagar e chamava o companheiro para ir junto e aproveitar para continuar o papo. Deviam ser todos uns nariz entupidos. 
Todo ano tinha o churrasco dos pais e nunca perdemos nenhum. Era a ocasião que eles "faxinavam" a casa para não traumatizar muito as mães, mas sem sucesso.
Guilherme no seu segundo ano e na nossa terceira visita, ficava em um quarto junto com um bicho, calouro, e em um beliche. Fui conhecer seu quarto e vi a cama de baixo bem arrumadinha e a de cima uma bagunça só, cheia de roupas de todos os tipos, as sujas, as lavadas pela Nê e sem passar e as mal passadas. Quando perguntei a ele qual era sua cama ele apontou a de baixo. Quando perguntei porque não colocava o bicho para arrumar a dele e tirar aquela roupa toda de cima ele começou a rir e falou:

- E vou enfiar a minha roupa aonde?

Só balbuciei um "como?" e ele completou:

- Pô pai, essa roupa é minha. Ele dorme no chão.

Mandei ele trancar a porta e voltamos para a sala. Na mesma tinha um colchão no chão, e eu não sabia se era um capacho gigante pela sujeira, ou um sofá, ou sei lá o que. O que não se sabe se pergunta, já dizia o Irmão Constantino do Arquidiocesano:
- O que é isso?

- Ué, um colchão.

- Certo, estou vendo, mas com que finalidade?

- Ué, o que se faz em um colchão?

Comecei a ficar irritado com as respostas bestas, e falei:

- Nem desconfio quando ele esta na sala e com uma mesa de centro em cima.

- Pô pai é a cama de um outro bicho. A mesa de centro ele põe nos pés e a perna entra por baixo.

Prometi a mim mesmo, a partir desse momento, a não perguntar mais nada, apesar de achar que nada naquela casa de dois vasos no mesmo banheiro e colchão na sala poderia me surpreender. 
Na saída encontramos um sofá na calçada e Beá que não compartilhou a promessa comigo perguntou o que aquilo estava fazendo na rua e foi o Beto que respondeu:

- Tiramos da sala para acomodar o bicho novo que entrou, o do colchão-carpete, (falou olhando para mim) e como não tinha onde pôr veio parar aqui.

- Mas não podem roubar? 

- Mãe, ele já andou aqui na rua por um mês. Colocamos para os lixeiros levarem ou alguém roubar e ficou aí até recebermos uma notificação da prefeitura. 

- Mas vocês usam essa porcaria?, Bea insistiu.

- Tomamos tereré toda a tarde aí.

- Mas e a chuva, filho?

- Pô mãe, não tomamos tereré na chuva.

Ai quebrei a promessa e falei:

- Mas não molha a merda do sofá?

- Molha, lógico, mas aí a gente forra ele com o colchão do bicho.

Demos um beijo em cada um e pegamos a estrada. Pensei que Bea ia chorar por 200 km, mas no 100 ela já tinha se recuperado.
 Mas não foi fácil.

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